quinta-feira, 5 de março de 2015

Dona Rosa Caveira

é um mistério só. Pomba gira pouco conhecida, tem reputação de maravilhosa curandeira e aspecto inquietante. Nas imagens populares, ironicamente difíceis de encontrar no Brasil, ela exibe um corpo meio esquelético e meio humano coberto com capa e capucho. Nos meios tradicionais é dito que ela é a “esposa” de Seu João Caveira, exu da “Velha Guarda” do cemitério e Chefe da Linha dos Caveiras, um grupo de servidores fiéis e muito prestativos. Em conversa ao pé do congá, com alguns irmãos de fé que também circulam pelos caminhos de algumas religiões de origem bantu (Kimbanda, Cangerê, Cabula), ouvi que Dona Rosa Caveira é protagonista de inúmeras lendas. Uma delas conta que Rosa nasceu no Oriente.

Sétima filha de uma simples família do campo, desde cedo aprendeu com seus pais as artes da cura, pois eles eram afamados xamãs. Sua falecida avó foi sua primeira guia espiritual. Em sonhos, a querida alma da ancestral instruía e aconselhava a neta. Rosa era uma menina privilegiada.

Aos dezenove anos ela conheceu um xamã muito mais velho. Eles se apaixonaram e casaram. Ela então começou um período muito intenso de atendimento espiritual aos cidadãos de sua vila e arredores. Sua vida transcorreu cheia de méritos e bênçãos. Rosa morreria depois de seu marido, saboreando o prazer de uma existência dedicada os mais necessitados. Outra lenda nos conta o segredo de seu nome… Ao redor da casinha onde sua família morava existia um roseiral selvagem. No final da gravidez, sua mãe não teve tempo de pedir ajuda à parteira local e a menina nasceu ali mesmo. Daí o nome: Rosa. Por que caveira?

Em certas regiões do Oriente, sobretudo na Índia, Tibet e Butão, alguns xamãs e yogues utilizam a caveira humana como um cálice ritual. A caveira, assim utilizada, não está relacionada com magia negra ou qualquer arte malévola. No Budismo Tibetano os Lamas utilizam uma caveira como cálice. Também fazem um pequeno tambor com duas metades de caveira… Na Índia ele é chamado de Damaru e a caveira de Kapala. Quando conheci a lenda de Rosa Caveira, imediatamente percebi a conexão com as tradições yogues e tibetanas. Na minha imaginação eu “vi” a grande mestra sentada numa alta montanha, segurando uma caveira e em profundo estado de meditação. Seria Rosa Caveira tibetana?

Pode ser que a lenda tenha se ocidentalizado e a planta original, que poderia ser o lótus, tenha se transformado em rosa. Neste caso seu nome seria Pema em tibetano. Em sânscrito, seu nome espiritual seria Kapalapadma (Lótus Caveira). Na tradição budista e mágica do Tibet, Mongólia e arredores, existem muitas histórias e lendas com as mesmas características das aqui mencionadas. O fato é que como Pomba Gira brasileira, na gira do dia-a-dia dos terreiros, Rosa Caveira é um pouco diferente de suas irmãs. Ela não se firmou como “mulher da vida” ou errante marginal. Mas se perpetuou como curandeira poderosa e ponte entre os diversos reinos do astral. Uma outra curiosidade circunda esta Pomba Gira. Rosa Caveira trabalha e vibra no cemitério…

Em algumas tradições orientais, as mesmas mencionadas acima, certo grupo de adeptos utiliza o cemitério para trabalhos espirituais de cura e transformação. Eles são chamados de Kapalikas ou portadores da caveira! As mulheres do grupo, além da caveira transportam um tridente. Certa vez eu estava caminhando com um amigo indiano pelas ruas do centro de São Paulo. De repente, diante de uma loja de artigos religiosos, ele literalmente ficou paralisado! Uma grande e vermelha estátua de Pomba Gira estava diante de nós.

Nua, majestosa, segurando um tridente e com uma caveira nos pés. Shivaji, meu amigo indiano, se curvou aos pés da imagem e disse:

“Trishula Kapala Ma! O que você faz aqui?” Trishula Kapala Ma é a Mãe do Tridente e da Caveira, uma representação do feminino sagrado que pode rondar os lugares de cremação. Ela destrói os fantasmas malignos e os demônios, come as ilusões humanas e resgata as almas das mãos dos seres das trevas. Seu aspecto pode ser “terrível”, mas a luz e a bondade emana de seu coração.

Atrás do aspecto funesto de Rosa Caveira com certeza brilha a mesma luz. Nela se encontram o Oriente e o Ocidente, o vermelho e o branco, a vida e a morte. Espero ter a humildade de Shivaji e também sempre me curvar diante do sagrado feminino.

Terrível ou bondoso, que importa?

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